O INICIO DA HISTÓRIA
Antes do mundo
existir, Ngutapajá existia. Ele não teve pai nem mãe. Mapana, a mulher de
Ngutapa, se conjuntó com ele. No mesmo lugar viviam também Baia e sua mulher.
Baia era parente de Ngutapa. No lugar onde esses quatro se criaram é onde
ficava a montanha Taiwegüne. E no igarapé Tonetü. Naquele tempo, a terra ainda
estava se formando. O mato era baixinho e o rio ainda tinha pouca água. Lá eles
viviam. Passaram-se muitos anos. Ngutapa e Mapana nunca habitaram juntos. Nunca
tiveram filhos. Um dia, quando o mato já estava crescido, Ngutapa foi caçar com
Mapana. No caminho eles começaram a brigar. Ngutapa agarrou sua mulher e lhe
deu uma surra. Depois disso, amarrou Mapana num pau, de braços e pernas abertos.
Deixou ela aí e seguiu para caçar no mato. Vieram as cabas e as formigas e
morderam a sua periquita. Ela sofreu muito. Então apareceu o pássaro cancã e se
sentou no alto do pau onde ela estava amarrada. Mapana disse para o cancã: Vovó, pode me desamarrar?
O pássaro gritou: Co-co-co-cou!
Vovó, venha me desamarrar. Aquele desgraçado me
prendeu aqui para me matar -
ela falou de novo. O cancã se transformou em gente e, chegando mais perto,
perguntou: O que lhe aconteceu, minha
neta? Se você quiser se vingar de Ngutapa, está aqui a caba. Ela pegou a
caba e guardou. A casa de caba era muito grande, mas parecia pequena. O Cancã falou
ainda: Você não pode ficar aí. Tem que
esperar o seu marido num lugar onde ele não possa ver. Depois disso, o
cancã se transformou em pássaro e foi embora. Demorou um pouco e Ngutapa voltou
da caçada. Vinha tocando flauta e pulava numa perna e noutra, cantando: Por onde anda Mapana?! As cabas e as formigas morderam a periquita
dela! Tcheruru tcheruru-u-u-u... Tcheruru tcheruru-u-u-u... assim dizia.
Mapana estava escondida num tronco de árvore, esperando Ngutapa passar. Escutou
esse canto e se preparou. Quando ele chegou, ela jogou a casa de caba em cima
dele e acertou-lhe os dois joelhos. Ngutapa caiu e não se levantou mais. Mapana
deixou ele aí mesmo e foi embora. Ngutapa foi se arrastando até em casa. Desde
que as cabas ferraram. Seus joelhos começaram a inchar.
COMO
NASCERAM YOI E SEUS IRMÃOS
Quando Ngutapa chegou em casa, foi
logo se deitar na rede. Mapana viu o marido chegar, mas nem ligou. Não queria
mais saber dele. Quando anoiteceu, Ngutapa começou a sentir muita dor nos joelhos.
Sofreu muito e chorou. Depois de uma semana, os joelhos cresceram. Começaram a
ficar transparentes e aparecia o que tinha lá dentro. Ele olhou e num dos
joelhos viu duas pessoas. No outro viu outras duas pessoas. No dia seguinte,
Ngutapa já podia enxergar num joelho um rapaz fazendo sua zarabatana e uma moça
tecendo um buré. E no outro joelho a mesma coisa. Depois disso, passou
mais um dia e os joelhos se abriram. Ngutapa olhou e de seus joelhos saíram
dois homens com suas zarabatanas e duas mulheres com seus cestos. Do joelho
direito, pulou Yoi e sua irmã Mowatcha e do esquerdo Ipi e sua irmã Aicüna. Aí
Ngutapa ficou bom. Não sentiu mais dor.
A ONÇA
COME NGUTAPA
Passaram-se alguns anos. Naquele
tempo, as pessoas imortais, ü-üne, cresciam muito depressa. Por isso, os filhos de Ngutapa logo
ficaram grandes. Um dia, Ngutapa saiu para pescar com timbó e Yoi e Ipi foram
caçar no mato. Enquanto Ngutapa pescava, um espinho entrou em seu pé. Estava
tirando esse espinho, quando uma onça chegou por trás c o engoliu.
Quando Yoi e Ipi voltaram da caçada,
não encontraram o pai em
casa. Eles não sabiam o que
tinha acontecido e ficaram preocupados então perguntaram para Mapana: Vovó, onde está nosso pai? Ela disfarçou
e respondeu outra coisa: Vassoura rodou.
E eles de novo: Cadê nosso pai? Nós
queremos saber o que aconteceu com ele.
O dente de cotia rói - ela disse.
Mas onde está nosso pai?
Vassoura rodou - falou
Mapana novamente. Depois deles insistirem muito, ela acabou contando: A cinza, tau’ü, caiu em cima do pai de vocês.
Com essas palavras, Yoi e Ipi entenderam que a onça havia comido Ngutapa. Ipi,
que sempre falava primeiro, disse para Yoi: Irmão,
irmão, o que nós vamos fazer para encontrar nosso pai? Vamos tirar um cabelo de
nossa irmã e com ele dar uma volta ao redor do mundo todo.
Calma lá - disse Yoi. Yoi
pensava mais para resolver as coisas. Ipi insistia: Irmão, irmão, vamos tentar fazer isso? Mas antes Ipi resolveu fazer
uma cerca e Yoi concordou. Yoi pensou nas estacas e elas apareceram. Depois de
aprontarem tudo, a cerca, a porta, eles tiraram um fio de cabelo de Mowatcha (Mowatcha era a irmã que saiu do
mesmo joelho que Yoi). Com esse fio,
eles deram a volta no mundo e juntaram as duas pontas na porta da
cerca. Aí foram puxando as pontas do cabelo e apertando o mundo. As águas
vieram atrás, como uma alagação. Depois disso, Yoi ficou de um lado da porta e
Ipi, com sua irmã Aicüna, do outro lado (Aicüna era a irmã que saiu do mesmo joelho
que Ipi). Os bichos começaram a passar. Primeiro os caititus. Depois os veados.
E depois outros veados. Depois vieram as queixadas e as onças vermelhas. Só no fim começaram a passar as onças
mesmo. Yoi desconfiou que entre essas onças estaria aquela que havia comido
Ngutapa. E perguntou a uma delas: Vovó, você
pode me dizer onde está aquela nossa inimiga? A onça respondeu: Ela está lá no final. Mandou Yoi escutar
uma voz que vinha lá de trás, gritando. Era a onça que vinha soprando no bucho
de Ngutapa. Falava: Arütü e’ri düa,
duo, durumü, durumü! Por essa voz, eles descobriram que aquela era a onça
que tinha engolido o seu pai. E, quando ela chegou mais perto, lhe perguntaram:
vovó, o que você vinha falando? A onça
não quis responder, mas de dentro dela veio aquela voz que dizia: Nada, nada, nada, meu neto. Nada, nada,
nada, meu neto. Yoi, Ipi e sua irmã Aicüna já estavam preparados para pegar
a onça. Aicüna tinha se transformado em jacaré. Eles levaram a onça para a
beira do rio, mas ela escapou e pulou na água. Então o jacaré carregou a onça
para o fundo e desapareceu. Ipi falou: Irmão,
irmão, irmão, o que nos vamos fazer agora para achar o jacaré? O rio está muito
grande, muito cheio. Vamos convidar o cupim para secar essa água?
Chamaram o cupim e ele logo
apareceu. Ele era bem alto, mas o tamanho certo ninguém sabe qual é. Mas o
cupim só conseguiu secar um pouco da água. Aí Ipi falou: Irmão, irmão quem nós vamos convidar agora? E resolveram convidar a
cigarra. Ipi perguntou a ela: Será que você
pode secar a água para nos?! A nossa irmã virada em jacaré está lá no fundo com a onça.
A cigarra tentou secar o rio, jogando a água para fora, mas estava com
caganeira e não pode trabalhar muito. Cada vez que fazia força para tirar água,
saia cocô: pôu! pôu! pôu! Assim o
trabalho não rendeu e o rio secou só mais um pedacinho.
Aí Ipi resolveu: Irmão, irmão, vamos então convidar o Cawa? Yoi
concordou e eles chamaram o Cawa. Este Cawa é uma pessoa e quer dizer “gente
gulosa”. Ele chegou e foi chupando a água. Foi chupando, chupando até encher as
orelhas e os cabelos. Assim conseguiu secar o rio. Meus netos, agora podem descer e procurar sua irmã. Depressa! - disse
o Cawa. Então eles desceram até a boca do rio e lá encontraram o jacaré descansando.
Conseguiram tirar a onça da sua boca e neste momento o jacaré se transformou
outra vez em gente. Voltaram para cima com Aicüna e também com a onça. Chegando
lá, o Cawa falou: Já, meus netos? Então
ele vomitou toda a água que tinha chupado e o rio tornou a encher. Só aí
puderam tirar Ngutapa de dentro da onça. Pegaram todos os pedacinhos de carne,
juntaram de novo e Ngutapa se levantou falando: Eh! Vocês me assustaram!
COMO
APARECEU O DIA
Um dia, Ipi falou a Yoi:
Agora nós vamos ver a história da samaumeira.
Naquele tempo não existia o dia. Era sempre noite.
Os galhos da samaumeira eram muito grandes e
cobriam
o mundo, escurecendo tudo. Um dia, Ipi falou a
Yoi: Irmão, irmão, o que nós vamos fazer
para clarear o dia? Resolveram então procurar um caroço de araratucupi,
para ver se conseguiam abrir um buraco na samaumeira. Logo que acharam Ipi
jogou o caroço na samumeira,
fazendo um barulho: Fürürürü! ëëëëê!
Mas nem um pouquinho de luz apareceu. Ipi, então, falou para o irmão fazer o
mesmo. Yoi jogou o caroço e se ouviu um outro barulho: ngune, ngune, ngune! Desta vez se abriu um pequeno buraco e se pôde
ver um pouco de luz. Mas essa luz logo desapareceu, porque os galhos da
samaumeira eram vivos e se fecharam. Ipi falou: Irmão, irmão, o que nós vamos fazer agora?
Ficaram pensando em algum animal que
pudesse derrubar a arvore. De repente ouviram a voz do pinica-pau: pururu, pururu. Yoi, então, convidou
este passarinho. Quando o pinica-pau chegou, tentou cortar a árvore com seu
bico, mas não conseguiu e foi embora.
Yoi e Ipi ficaram pensando,
pensando... Aí ouviram no buraco de um pau uma voz que fazia: tu, tu, tu, tu, tu.
É uma cotia. Vamos chamá-la - disse Yoi. É uma cotia mesmo.
Ela tem um machado - disse Ipi. Ipi se interessou por este machado e queria
matar a cotia para ficar com ele. Mas Yoi alertou: Cuidado! Pensar assim é errado. Ipi insistiu e foi até o caminho da
cotia. Mas antes fez um disfarce: pintou o corpo e botou penas por todo ele. E
desse jeito foi esperar a cotia. Yoi sabia por que o irmão estava com essa roupa, mas nada falou. Ipi ticou
deitado e só as penas apareciam. Fingiu que estava dormindo, mas sua boca ficou
aberta. A cotia veio batendo nos paus com o machado dela: tu, tu, tu, tu, tu. Olhou e viu aquelas penas de passarinho e por três
vezes perguntou: O que está fazendo aí? Ipi
nada respondia. Ele pensava: Se sou só
pena de passarinho, então não posso falar. A cotia disse: o que é isso?! Se não me responder, eu vou
mijar na sua boca. Ele continuou sem responder e a cotia pensou: Nem responde... É mesmo que morto. E
ameaçou: Cuidado que eu vou arrancar a
sua língua. Ipi, mesmo com medo, falou: Pode
arrancar, pode meter a mão na minha boca. Quando ela se aproximou, Ipi aproveitou
e ela arrancou a paleta. Essa paleta era o machado. Depois disso, a cotia saiu
mancando, sem a perna de trás. Ipi fugiu com o machado, mas a cotia o perseguiu
gritando: Olhe, Ipi, quando você fizer
roça, não fale no meu nome. Você tomou o meu machado, por isso daqui pra frente
eu vou roubar a roça de vocês. A cotia, para cobrar esse roubo, até agora
gosta de roubar as roças. Foi da perna dela que os Ticuna conseguiram o
machado. Agora. essa cotia não pode mais plantar. Só a cotia pequena é que
ainda tem o machado. Ipi voltou e disse para Yoi: Irmão, irmão, irmão, agora eu já tenho o machado. Estou pronto para
derrubar a samaumeira. E começou a trabalhar. Fazia: tu, tu, tu, tu, mas nada de derrubar. Continuou, continuou até
cansar e o buraco não aumentava. Abria um pouco e tornava a fechar. Chamou Yoi
para que ele tentasse também.
Então Yoi veio e cortou, cortou, e o
lugar onde o machado batia foi se abrindo. Ipi viu o trabalho do irmão e
perguntou: Por que o meu não dá certo?
Não fale desse jeito - disse
Yoi. Quando se cansou, Yoi entregou o machado para Ipi e este continuou a
derrubar a samaumeira. Desta vez o corte não se fechou. Continuaram derrubando,
um pouco um, um pouco o outro, mas a árvore não caia.
Yoi olhou e pensou: Já está tão fininho, por que não cai?. Aí
os irmãos olharam para cima e viram a preguiça real, lá no alto, segurando a
árvore. Pensaram: O que podemos fazer
para ela largar?. Falaram entre eles, mas um quatipuru estava perto e
ouviu. Disse-lhes que teria coragem para tirar a mão da preguiça lá do galho. Yoi aceitou e o quatipuru
subiu só até a metade: trrrrrrn.
Desceu sem coragem, porque achou muito
alto. Então Yoi resolveu buscar um bocado de formiga de fogo para jogar no olho
da preguiça. Deu as formigas para um quatipuru pequeno que apareceu. Este disse
que teria coragem para fazer o trabalho. E foi ate lá só para experimentar: tauripiriririrrrrr. Voltou e falou que
dava certo jogar as formigas. Subiu novamente e atirou as formigas no olho da preguiça
e depois deu um pulo para trás. Quando ele pulou, o machado lhe machucou o
rabo. Por isso este quatipuruzinho tem o rabo dobrado nas costas. Enfim, a
samaumeira caiu e o dia começou a clarear. Aí puderam ver o sol, o céu, as
estrelas. Ficaram animados. Depois disso, o dia amanhecia sempre da mesma
maneira. Yoi e Ipi entregaram sua irmã Mowatcha para se casar com o
quatipuruzinho, porque ele era corajoso.
O
CORAÇÃO DA SAMAUMEIRA
Depois de passado um tempo da
derrubada da samaumeira, Ipi foi ate lá para ver se a árvore já tinha
apodrecido. Mas ela continuava viva, o pau começou a brotar de novo. O que tem essa arvore que não quer morrer?, pensou
Ipi. Foi ver de perto e escutou um barulho: tu,
tu, tu. Aí disse para Yoi: Essa
árvore tem coração, está viva. O que podemos fazer? E continuou: Eu mesmo vou tirar esse coração com o
machado. Ipi começou a cavar. Yoi logo tomou seu machado e quis também
cortar. Ipi, como sempre, queria ser o primeiro, ser dono de tudo, e quis pegar
de novo o machado. E assim os dois ficaram disputando todo o tempo. Por fim,
Yoi conseguiu cortar com força e o coração pulou. Ipi disse: Maninho, eu mesmo vou pegar.
Porém, um calango estava perto,
cuidando, e acabou comendo o coração. Mas não conseguiu engolir e o coração
ficou parado em sua garganta. Vendo isso, Ipi preparou um tição de fogo e botou
na garganta do calango. Ele gritou e o coração pulou para fora. Então uma
grande borboleta azul engoliu o coração. E Ipi com aquele mesmo fogo queimou a
asa da borboleta e ela vomitou tudo. Por isso, a borboleta azul tem manchas na
asa. Depois, o coração entrou num buraco de pedra muito pequeno. Daí era difícil
de tirar. Yoi, então, chamou a cotia e falou: Vá lá e roa o coração pelo lado direito. Depois traga o caroço e plante
lá no nosso terreiro. Esse coração era como uma semente. A cotia fez o que
Yoi pediu. Ipi não sabia onde a cotia tinha plantado o caroço do
coração. Começou a varrer o terreiro, procurando o lugar onde ele estava enterrado.
Varreu durante dias e dias. Ele sabia que essa planta iria servir para alguma
coisa. Passado um tempo, começou a nascer uma árvore de umari.
HISTÓRIA
DE TETCHI ARÜ NGU ‘Ü
Passou um ano. A árvore já estava
em tempo de botar flor e fruto. Ipi cuidava muito dela, varria, capinava,
deixava tudo limpo. Um dia, Ipi foi ver e disse para Yoi: Veja, começou a florar o primeiro olho.
Não se preocupe tanto com essa fruta do umari - disse Yoi. Quando Ipi olhou outra vez, o umari
já tinha nascido. Esse umari vai ser meu — disse ele. Não se preocupe tanto. Cale a boca - falou
Yoi. A primeira fruta já estava amarelando, uma só. Ipi ficava todo tempo
olhando aquele umari. Nem dormia, só olhava, olhava. Ele sempre dizia: Esse vai ser meu. Pode ficar - respondia Yoi. Depois de vários dias esperando que o
umari caísse na sua mão, Ipi começou a ter fome, sono e sede. Um dia não agüentou
e disse para Yoi: Maninho, acho que vou caçar, porque tenho fome. Quando cair a fruta,
você não pega. Deixe aí que eu volto. Yoi estava se embalando na maqueira e
de repente o umari caiu. Ipi ainda estava no mato caçando. Quando Yoi foi ver,
esse umari era uma moça. Ele foi conversar com ela. Era bonita e nova. Chamava-se
Tetchi arü ngu ‘ü, que quer dizer: “moca do umari”. Yoi pegou a moça e levou
para casa para ser sua mulher. Lá diminuiu Tetchi arü ngu’ü e escondeu-a numa
flauta de osso. Quando Ipi chegou do mato já era tarde. Começou a arrumar a zarabatana
e foi logo olhar o umari. Ele viu que a fruta não estava mais lá e perguntou
para Yoi: Irmão, você viu o umari cair? Ele não está mais aqui. Não foi você que
tirou?
Eu não sei de nada. Alguém deve ter achado - respondeu o outro, tentando enganar o irmão.
Anoiteceu e Ipi não conseguia dormir. Ele sabia que o umari era uma moça e estava desconfiado que Yoi tinha
guardado ela. A moça e Yoi estavam conversando e rindo. Ipi ouviu e perguntou
com quem ele estava: É com a vassoura que
eu estou rindo, não estou com sono e peguei uma vassoura - disse Yoi. Ipi
então foi pegar uma vassoura, mas a sua não ria. A moça achou graça disso e Ipi
tornou a perguntar: Quem está aí?
É um banco que está aqui e eu
estou brincando com ele - respondeu
Yoi. Aí Ipi foi pegar um banco, mas não aconteceu nada. Ele continuou intrigado.
Yoi disse outra vez que estava brincando com o quiricá. Mas Ipi experimentou e
de novo não aconteceu nada. O quiricá não riu. A moça tornou a rir e Yoi
também. Ipi ficou muito intrigado.
Um dia, Yoi foi caçar e Ipi ficou
em casa para procurar a moça. Yoi sabia o que o irmão pensava. Ipi achou que
ela ia aparecer para ele. Esperou e nada. Resolveu fazer alguma coisa para
atrair Tetchi arü ngu ‘ü. Trouxe peixinhos lá do porto e botou-os no forno
quente. Os peixinhos pulavam e ele dizia: Tchautarucunhe,
tchautaracunhe, tchautaracunhe!
A mulher de Yoi achou graça e Ipi
ouviu sua risada, mas não a encontrou. Ele repetiu essa brincadeira por quatro
vezes, assando mais peixinhos, mas não encontrava a moça. Desconfiou que ela
deveria estar na flauta. Procurou por duas vezes. Na segunda vez, encontrou a
flauta e a sacudiu até que Tetchi arü ngu’ü saiu. Logo Ipi beijou a moça e
habitou com ela. Na mesma hora sua barriga encheu. Ipi tentou diminuir a moça
para colocá-la dentro da flauta, mas não deu, porque ela já estava barriguda; Aí,
ele ficou com medo do irmão, que já estava para chegar. Resolveu sair de casa
para encontrar Yoi. No caminho, viu a fruta de paxiüba e pegou o pó para encher
a sua pica. E pensou: Agora Yoi não vai
saber que habitei com a mulher dele. Quando eles se encontraram, Ipi disse:
Irmão, irmão, irmão. Olhe minha pica,
está bem cheinha! De repente, o pó da fruta de paxiüba caiu. Yoi não gostou
disso e falou: Olhe, você está doido mesmo.
Mas, maninho, eu não fiz nada para sua mulher.
Quando chegaram em casa, Yoi viu a
mulher já barriguda. Ipi ficou com vergonha e perguntou: o que vamos fazer agora? Sua mulher já está barriguda. Eu não sei,
agora é você quem sabe. Quando estava quase na hora de nascer a criança, Ipi
quis saber o que fazer. E Yoi falou: Agora
você é quem sabe. Vá apanhar fruta de jenipapo e depois rale e pinte seu filho.
Se o filho fosse meu, não seria assim. Tetchi arü ngu ‘ü não iria sofrer tanto,
não derramaria tanto sangue, não doeria. Mas você é doido, por isso nosso povo
vai sofrer dor. Agora vai ser tudo diferente. Aí o menino nasceu. Ipi foi
procurar jenipapo para pintar o corpo da criança.
Para castigar o irmão, Yoi mandou
os jenipapos para longe. Ipi andou muito e sua mulher ficou em casa passando
fome. Yoi não lhe deu nada para comer e beber. Quando Ipi chegou sem as frutas,
perguntou a Yoi onde encontrá-las: Vá lá
na nossa capoeira que tem muito -disse Yoi. Mas Ipi encontrou só árvore sem
fruta. Quando contou isso para o irmão, este mandou Ipi voltar e subir na
árvore bem no alto. Subiu, mas só viu dois frutos. Perguntou a Yoi: Chega esses? Quantas vezes você fica me perguntando
coisas? Não lhe disse que o filho não é meu? Vá lá e pegue uma fruta só -
respondeu Yoi. Mas toda vez que Ipi tentava alcançar a fruta, Yoi fazia a
árvore crescer mais e mais. Cresceu até passar das nuvens e ele subindo atrás.
O pé de jenipapo quase que chega na outra terra, no outro mundo. Para impedir
que Ipi subisse. Yoi mandou crescer uma orelha-de-pau ao redor do tronco. Aí
Ipi resolveu se transformar em formiga para poder passar pela orelha-de-pau.
Conseguiu passar e lá em cima ele enxergou o rio e viu os Cambewa (Awane). E
disse para Yoi: Meu irmão, no rio tem muito
Awane. É bom a gente ter cuidado com eles.
Finalmente, Ipi conseguiu pegar o jenipapo.
Yoi não gostou do que Ipi tinha
falado e fez crescer a orelha-de-pau outra vez. Ipi ficou pensando o que fazer:
Vou virar urna tucandeira para descer e
também vou diminuir esse jenipapo. Pegou o jenipapo na boca e desceu. Lá
embaixo se transformou em gente de novo.
Yoi queria castigar o irmão e
pensou que ele não ia conseguir trazer a fruta. Mas, chegando em casa, Ipi
disse: Eu sou homem mesmo, porque agüentei
esse trabalho todo. Sou homem corajoso. Ipi, então, quis saber onde ralar o
jenipapo. Mas mandou Ipi buscar folha de ngu para ralar o jenipapo em
cima dela. Três vezes Ipi perguntou se precisava ralar mais. Yoi respondia sempre
que sim. Na quarta vez, ele já estava ralando o braço dele mesmo. O jenipapo
tinha acabado. Aí perguntou para Yoi: Irmão,
irmão, onde eu vou parar?
Ainda tem. Pode ralar com força - disse Yoi. Então Ipi gritou de dor e ralou todo seu corpo. Aí, Yoi
mandou Tetchi arü ngü preparar a massa do jenipapo e botar no bure, cesto,
sem perder nem um pedacinho. Com esse jenipapo ela pintou o filho e depois foi
até o porto para jogar a borra na água. Tudo
isso é pedaço do Ipi que você jogou na água - disse Yoi para a mulher.
O
POVO PESCADO POR YOI
Tetchi arü ngu’ü jogou a borra do
jenipapo no igarapé Evare. Depois essa borra apareceu transformada em piracema.
Yoi tinha feito um cercado no igarapé, para esperar a piracema. Ele sabia que
Ipi iria aparecer também e queria pescá-lo. E ficava todos os dias sentado no
porto à espera do Ipi. Em
casa, Tetchi arü ngu’ü sempre se lamentava com seu filho: Tenho muita saudade de seu tio Ipi. Quando ele estava vivo nada nos
faltava. Sempre tinha comida em casa. Yoi nunca traz nada para a gente comer. Yoi,
quando ia para casa, se disfarçava, ficava bem pequeno e por isso escutava tudo
o que a mulher dizia. Então, resolveu perguntar a ela: Você tem muita saudade de Ipi? Você estava falando o nome dele.
Eu não falei o nome de Ipi. Falei que queria cantar o seu nome, Yoi - disse Tetchi arü ngu’ü. Nada, você falou o nome do Ipi - continuou Yoi. Se você falou mesmo o nome dele, amanhã nós
vamos pegar uma vara de anzol para pescá-lo. No dia seguinte, foi até o igarapé
para ver se os peixinhos já tinham
aparecido. Viu muitos peixes. Tetchi arü ngu’ü também estava ali. Yoi queria
pescar aqueles peixes para que eles se transformassem em gente. Queria pescar o
seu povo. Foi então buscar urna fruta de tucumã para usar como isca. Mas com a
fruta de tucumã ele não
conseguiu pescar gente. Os peixes se transformavam em animais. Pegou queixada,
porco do mato, todos com seu par, sempre macho e fêmea. Vieram muitos animais. Então
Yoi pensou que para pescar gente ele precisaria arranjar uma outra isca. Aí
experimentou com macaxeira e os peixes que saiam logo se transformavam em
gente. Assim pescou muita, muita gente. Seu irmão, porém, não apareceu entre
esse pessoal. Foi então que ele viu
um peixinho com uma mancha de ouro no nariz. Sabia que aquele era Ipi. Tentou
pescá-lo, mas Ipi não pegava sua isca. Aí disse Yoi para Tetchi arü ngu’ü: Tome o anzol. Venha pegar o seu macho. Antes
de Tetchi arü ngu’ü encostar o anzol na água, o peixinho pulou e pegou a isca.
Saltou para terra e virou gente. Era Ipi. Ele falou: lá embaixo de onde eu venho tem muita mina, muito ouro. Eu quero voltar
para lá.
Está bem, mas agora você vai pescar o seu povo - disse Yoi. Ipi pescou muita gente, mas eram
todos peruanos. E aqueles que Yoi tinha pescado eram os Ticuna mesmo. Eram o
povo Magüta. Do resto da borra do jenipapo, Yoi pescou os negros. Depois da
pescaria estavam todos juntos. Yoi, então, resolveu virar o mundo, porque ele
queria ficar para baixo, para o lado em que o sol nasce. Ipi não viu a hora em
que o irmão fez essa virada. Se foi, pensando que seguia para baixo. Quando viu
que estava no lado de cima, já não podia mais voltar.
Eles só foram embora mesmo depois
da festa. O pessoal da festa disse: Agora
já não tem mais Yoi nem Ipi no Evare. Um dia, Yoi pensou como poderia fazer
para que cada pessoa tivesse sua nação. Até aquele dia só existia uma única nação
e as pessoas não podiam se casar entre elas. Ele já sabia como deveria fazer,
mas perguntou a Ipi. Ipi também já sabia e logo foi dizendo: Então, meu irmão, vamos matar uma jacarerana
para conhecer a nação do pessoal? Yoi concordou e eles logo acharam e
mataram urna jacarerana. Cortaram o animal em pedacinhos e colocaram num pote
bem grande para ferver. Quando já estava
cozido, chamaram o pessoal para beber. Numa colher de pau, Yoi dava a cada
pessoa um pouco daquele caldo. Os primeiros que tomaram receberam a nação de onça.
Cada pessoa que bebia ia embora, ficava longe dos outros. Depois da nação de onça,
veio a de saúba. O pessoal bebia e logo sabia sua nação. Ah! Esse caldo está azedo, é da nação de
mutum - falou uma das pessoas. Beberam até que se criaram todas as nações
que existem hoje.
(In OLIVEIRA FILHO, 1988, 90-105.
I disegni sono opera degli stessi Ticuna)
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